9 de março de 2009

Estórias de desadormecer


- Cala-te, senão esta noite não durmo.

Fora do carro, noite escura. E o carro rolava a medo numa estradita rodeada de mato e mal iluminada. Dentro do carro, cinco alminhas assustadas falavam de almas penadas. De ocorrências estranhas e inexplicáveis à luz da ciência. Do chamado oculto.

- Mas quem é que puxou esta merda de conversa?

O responsável lá se acusa. Arrependido, decerto, por essa altura. Mas, coitado, tinha puxado o assunto de forma perfeitamente inocente e no seguimento de uma qualquer banalidade - algo como: "Ah, e por falar nisso...". Mas, inevitavelmente, estava puxado o primeiro fio de um novelo de "coisas estranhas". A partir dali, cada um dos cinco teria certamente algo a acrescentar. Algo que lhe acontecera a si, a um amigo, a um familiar, a um amigo de um familiar e por aí fora. O novelo do inexplicável desenrolava-se a cada estória, surreal, e parecia interminável. Sufocava o habitáculo do pequeno carro e cada um dos seus ocupantes.

- Porra, calem-se lá que já estou todo arrepiado. - Quem o diz é o condutor.

Uma alminha solidária no banco de trás muda imediatamente de assunto. "O jantar estava muito bom." Respira-se de alívio, mas ninguém atenta verdadeiramente no novo assunto. O pensamento ficou mais atrás, a martelar num qualquer pormenor macabro de uma ou outra estória. E não demora muito até se voltar ao assunto anterior. Porque a curiosidade fala mais alto. E porque há no oculto uma espécie de atracção sado-masoquista. Morre-se de medo de falar em espíritos e assombrações, mas fala-se!

- É impressionante como estas conversas surgem sempre à noite.

Afinal, têm de estar reunidas as condições para que se fale do oculto. Se for a meio de uma tarde de sol não resulta. Não há ambiência. Não há misticismo. O segredo é falar de espíritos em noite cerrada, horas ou minutos antes do recolher. Para que os espíritos nos ajudem a vestir o pijama e nos aconcheguem aos lençóis. Para que, de luz acesa, fiquemos a tricotar no novelo do oculto até o sono chegar. E logo que ganhemos coragem para apagar a luz, abandonamos o novelo na mesa-de-cabeceira e deixamo-lo lá, esquecido. Até certa noite lhe voltarmos a pegar, depois de mais uma estória de desadormecer.

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