27 de fevereiro de 2009

Uma estória com tanto de ficção como de realidade

As cadeiras das salas de espera dos hospitais são duras. Independentemente de muita ou pouca ergonomia. Independentemente do material de que são feitas. Almofadadas ou não. As cadeiras das salas de espera são sempre duras. É um desconforto que advém mais da espera do que da própria cadeira. Durante mais de duas horas, Maria contorceu-se na cadeira laranja fluorescente em que esperava. Impaciente. Cruzava as pernas, descruzava-as, tamborilava com os dedos nas cadeiras que a ladeavam. Estava sozinha naquela fila de cinco cadeiras, unidas por um ferro cilíndrico e ferrugento. À sua frente, mesmo na sua linha de olhar, um relógio padrão, típico daqueles espaços. De plástico preto, redondo – também poderia ser quadrado, mas aquele era redondo. Grande o suficiente para que a fila do fundo da sala o conseguisse ver com clareza e distinguir do fundo branco os dois ponteiros negros. O das horas já passava das 4h. E o dos minutos era vigiado atentamente pelo olhar de Maria . Minuto sim, minuto não, o olhar dela despregava-se do chão e encarava o ponteiro, achando-o, provavelmente, vagaroso. Naquela altura, a operação ao seu marido já deveria ter terminado. Os médicos avisaram que demoraria cerca de duas horas. E esse tempo já tinha passado. A impaciência tomava conta do corpo da Procuradora do Ministério Público. Afundava-se na cadeira e amarrotava o tailleur cinza-claro que vestia. Cinzento era também o seu semblante, apesar da maquilhagem suave e de cores claras que usava. O cabelo negro convenientemente preso na nuca deixava-lhe o rosto a descoberto. E deixava adivinhar a sua idade. Aparentava ser demasiado jovem para Procuradora. Talvez tivesse entre 30 e 35 anos. A pasta de trabalho pousada aos seus pés ajudava a compor a ideia de que a Procuradora não teria sido arrancada da cama a meio da noite. Provavelmente estaria ainda a trabalhar no Tribunal do Barreiro quando soube o que acontecera ao marido. Provavelmente estaria ainda a trabalhar quando, fora daquele Tribunal, agentes da Esquadra de Investigação Criminal da PSP do Barreiro apanhavam João em flagrante. João tinha sido libertado da cadeia de Setúbal por bom comportamento, mas voltara a reincidir e a traficar. Tinha consigo mais de 200 gramas de cocaína pura quando foi apanhado em flagrante pelos agentes da EIC, entre os quais estava o marido de Maria. Carlos Santos, agente da PSP há dez anos, cumpria o seu dever, enquanto Maria também cumpria o seu. E no final da noite ambos acabariam no Hospital de São José. O agente Santos seguiria das imediações do Tribunal do Barreiro para uma busca domiciliária a casa do João, onde seria baleado no maxilar superior esquerdo. E acabaria operado no Hospital de São José. Maria seguiria do Tribunal do Barreiro directamente para o Hospital de São José, onde passaria mais de duas horas numa cadeira laranja fluorescente. E estaria nessa cadeira quando lhe dissessem que a operação do marido correra bem, mas ele iria ficar desfigurado para o resto da vida. Era duro.

26 de fevereiro de 2009

Uns dias depois... uma estória de Carnaval

- Palhaços!

Grita exaltado o Zé Quintolas, depois de ser atingido. Um ovo em cheio na testa. Splash!

- Merda!

O Zé Quintolas vocifera para si mesmo, enquanto limpa o que resta do ovo com uma mão. Os putos mascarados de palhaços afastam-se dele às gargalhadas. Munidos de ovos e farinha, espalhavam o terror da aldeia naquela terça-feira de Carnaval. E as vítimas das diabruras ficavam possuídas de fúria, tal como o Zé Quintolas com o ovo escarrapachado na testa. O que era suposto ser uma brincadeira engraçada de carnaval transformava-se num rol de insultos que – em circunstâncias normais – aquelas crianças não deveriam escutar. Vá lá que o Zé Quintolas se tinha livrado da farinha. Os miúdos tinham perdido a coragem depois do ovo. Afinal, não era fácil afrontar o durão da aldeia. Sobretudo quando esse durão carrega uma espingarda.

O Zé Quintolas carregava também um apelido histórico na história da caça. O apelido e a espingarda, herança do pai, faziam dele caçador. Mas o jeito, esse não o tinha herdado do falecido pai. O Zé Quintolas era uma desgraça com a espingarda. Nos seus quarenta anos de caça envergonhavam-lhe o currículo pouco mais de cinquenta lebres – consta que dez delas já estavam mortas quando as apanhou – uma dúzia de perdizes e uma vaca – que pastava no sítio errado à hora errada. Se o Zé já era uma desgraça sóbrio, quando bebia nem se fala. Saía da tasca a cambalear, com a espingarda mal arrumada debaixo de um braço e a chamar as suas presas como quem chama um gato. “Bichinho, bichinho, bichinho… “. E ai de quem o tentasse separar da espingarda carregada. O Zé transfigurava-se. Ameaçava os bem-intencionados com um tiro certeiro – embora todos soubessem que dificilmente ele o conseguiria dar. Por isso mesmo, lá o deixavam andar, aos caídos, com a boina entortada na cabeça e a espingarda a bater-lhe nos pés. Aos tropeções. Que figura! Casaco axadrezado de lã, fizesse sol ou fizesse chuva. Nunca ninguém o viu sem aquele casaco. Era a sua imagem de marca, dizia, orgulhoso. De facto, não fosse o casaco e a espingarda ninguém o tomaria por caçador. Excepto ele próprio, que se julgava o maior caçador de sempre – a seguir ao falecido pai, claro. Não ousava ultrapassar a perícia do progenitor. “Um dia ainda caço um javali” ouviam-no dizer muitas vezes. Gargalhadas. O mais perto que ele estaria disso seria atirar noutra vaca que, placidamente, pastasse, mesmo ali à mão de semear.

A verdade é que, contrariando os cépticos da aldeia, o Zé Quintolas acertou num javali. Tudo aconteceu há um ano atrás. A noite já tinha caído quando o Zé voltava da tasca. E, apesar do breu e do vinho, ele jura a pés juntos que nunca viu nada com tanta clareza na sua vida. Um suíno com mais de uma tonelada, certamente, mexia-se nos arbustos da beira de estrada. E o Zé nem queria acreditar na sua sorte. Preparou logo a espingarda, pois não queria falhar uma oportunidade tão boa. Apontou a mira aos arbustos. Ensaiou o equilíbrio. Concentrou-se. E pum! O animal tombava depois de um grito. O Zé Quintolas não cabia em si de felicidade. Aliás, desmaiou ali mesmo no asfalto. De felicidade ou da bebedeira. Talvez das duas, não se sabe. Quem chegou a seguir, atraído pelo disparo, presenciou um espectáculo memorável. No asfalto, o Zé Quintolas continuava caído, abraçado à arma e com um sorriso nos lábios. Nos arbustos, a prima Odete gemia com as dores do tiro que levara. Vestia um fato de serapilheira, tinha um copo preso por um elástico em frente à boca e umas orelhas de cartão coladas à nuca numa bandolete. Naquele carnaval, a Odete decidira mascarar-se de javali para afrontar o primo Zé. Só não contava que tropeçasse no fato improvisado e caísse aos arbustos. Não contava, sobretudo, que os olhos toscos do primo lhe confundissem os cento e muitos quilos embrulhados em serapilheira com o lombo de um javali.

“Um dia cacei um javali. Era dia de carnaval”, passou a dizer o Zé. Gargalhadas. Ele nunca soube o que realmente acontecera naquele dia de Carnaval. Assim como nunca soube porque é que a prima Odete deixara de lhe falar.

20 de fevereiro de 2009

Hoje acordei para aqui virada.

Hoje acordei com vontade de criar um blogue. Estranho eu acordar para aí virada. Logo eu que nunca tinha ponderado essa hipótese. Nunca fui de seguir modas e, convenhamos, os blogues estão na moda. Mas, curiosamente, hoje fui atingida. Possuída pelo espírito da blogosfera. E quando um espírito nos possui o melhor é não oferecer resistência.
(Não se iludam com tal mandamento. Este não será mais um blogue esotérico!)
Também não quero ser mais um blogue balofo e desprovido de pertinência. Não quero ser mais um blogue confessional ou auto-biográfico. Não quero pretensiosismos. Snobismos. Aforismos. Ismos, ismos. Não quero ser apenas mais um blogue.
Também não quero ser O blogue. Lá está, isso seria pretensiosismo.
Sinceramente, não sei o que quero. Ainda não pensei nisso. Primeiro, porque não acordei assim há tanto tempo. E segundo, porque um livro de estilo não se faz do pé para a mão - normalmente faz-se com os pés.
Acho que o mais facil é deixar fluir. Para já, tenciono expôr ao olhar crítico de meio-mundo - ou talvez um pouco menos - algumas das coisas que tenho guardadas na gaveta. Textos, entenda-se.
E só esse propósito, para já, chega-me. Claro que, não querendo aumentar o número de suicídios entre bloggers - já bastante elevado -, talvez intercale textos meus com devarios alheios. Sei lá, coisas que ache interessantes, pateticamente desinteressantes, curiosas, dignas de serem postadas - eis uma palavra que nunca pensei escrever, mas que neste contexto se aplica. Pressinto que o meu léxico vá aumentar substancialmente.
Termino com algo que quero partilhar - chiça, parece que o registo confessional é difícil de contornar. Flor de macieira é o título que dei ao meu primeiro livro, ainda inacabado. O livro que um dia espero publicar. Logo a seguir a ter um filho e plantar uma árvore (uma macieira, quem sabe). Flor de macieira representa, por isso, o que de mais importante tenho guardado na gaveta.
Em breve, a primeira flor desabrochará. Logo a seguir, outra e outra, tantas flores se lhe seguirão, até que a macieira se encha de vaidade. Fértil.
Bem-vindos ao meu pomar!

NOTA: Este post, assim como todos os seguintes até 2014, foram importados do meu primeiro blogue, "Flor de Macieira".