2 de março de 2009

Conversa fictícia com o polícia da estória anterior... dez anos depois.

A mão direita daquele homem sentado apaga o filtro do cigarro no cinzeiro pousado mesmo ao seu lado. A mesma mão trémula alcança depois a garrafa de cerveja pousada mesmo ao lado do cinzeiro e acaba com o que resta nela. Acaba assim a conversa de duas horas e tal com aquele homem. E enquanto a mão direita matava quase em simultâneo um cigarro e uma cerveja, a mão esquerda permaneceu colada à face esquerda, sem dali sair. Foi assim durante toda a conversa. Naquele sofá, a mão esquerda raramente abandonou a face esquerda. O que poderia ser sinal de enfado, ali não o era. Aquela mão quieta, o cotovelo esquerdo apoiado sobre o joelho esquerdo empoleirado no outro, dizia-nos algo sobre aquele homem. O homem que gesticulava, bebia e fumava com a mão direita, enquanto agia como se o seu lado esquerdo não existisse.

Há dez anos atrás, a mão direita daquele homem não era trémula. Não o podia ser. Tinha de empunhar uma Walter de calibre7.65 mm com a firmeza que a profissão exigia. Há dez anos atrás, aquele homem era um agente da PSP ao serviço da Esquadra de Investigação Criminal do Barreiro. Há dez anos atrás, o agente Santos – hoje, apenas Santos – empunhava a sua arma com ambas as mãos, firmes.

- Só os duros conseguem segurar uma arma com firmeza em situações de perigo.

E Santos era “O Duro” lá da Esquadra, precisamente por isso. A sua alcunha de profissão acompanhava-o na PSP desde os tempos em que era novato. O agente de vinte e poucos anos, inexperiente, não hesitava sob pressão. Não recuava perante ameaças.

- Era o primeiro a puxar da arma e a olhar o perigo de frente.

Assim foi durante os dez anos em que esteve ao serviço da PSP. Excepto na noite em que foi baleado. Naquela noite, Santos entrou na casa de traficantes a gritar “Policia” e, como era habitual, avançou primeiro. Só que nessa noite – inexplicavelmente – Santos não puxou da arma. Manteve-a no coldre, sob vigília da mão direita enquanto a esquerda segurava uma lanterna. A casa estava às escuras. E assim ficou Santos depois de um estrondo e um clarão. Tinha sido atingido.

- Até hoje não sei o que me deu naquela noite.

Uma bala do revólver Taurus, de calibre 0.38mm. Acertou-lhe no maxilar superior esquerdo e desfez-lhe o céu-da-boca.

Santos ficou inconsciente, caído no chão do corredor daquela casa, às escuras. A história do que se passou a seguir foi-lhe contada mais tarde, pelos restantes protagonistas, os seus colegas na rusga. Foram eles que lhe valeram.

- Agiram depressa e impediram que o traficante disparasse sobre mim outra vez.

Os agentes Simões, Tavares e Cunha ainda trabalham na PSP, mas já não são agentes no terreno. Têm cargos administrativos na polícia, até atingirem a idade da reforma. Reforma que, para o colega Santos, chegou mais cedo. Sem “O Duro”, os três agentes ainda trabalharam no terreno durante mais alguns anos. E nunca mais tiveram um susto como naquela noite de há dez anos atrás. Todos se lembram com clareza do que aconteceu.

Depois de Santos ter sido atirado para trás com a violência do disparo e ficar caído no chão com a cara desfeita, os seus colegas agiram por instinto. O mais prudente a fazer seria recuar para um ponto seguro e negociar com o autor do disparo e possíveis cúmplices. Com a casa às escuras e a porta entreaberta não se sabia quantos traficantes poderiam estar naquele espaço. Só se sabia que, por detrás daquela porta, havia pelo menos um sujeito armado. Mas o colega caído, inconsciente, fizera-os esquecer o protocolo. Os três agentes avançaram imediatamente. “Bora, bora, bora”. O agente Simões dava a ordem aos colegas que o seguiam. Era ele que, antes, seguia logo atrás de Santos. Os três avançaram com as armas em riste – sempre as tiveram seguras entre as mãos, desde que entraram. O Simões pontapeou a porta de uma vez só e gritou para dentro “largue a arma. É uma ordem!”. Nessa altura, Tavares e Gandarez já estavam posicionados nas costas do colega. Os três formavam um bloco que separava Santos do traficante que o abatera. Era só um. Amedrontado, largou imediatamente o revólver Taurus.

- Ficou tão aflito por nos ver. Devia pensar que os polícias fazem rusgas sozinhos.

Até hoje, Simões não percebe como é que se dispara sobre um polícia. Nunca se sai impune de um acto como esse. Enquanto algemava o traficante, Simões reparou que ele olhava com remorsos para a figura do Santos em sangue. “Estás arrependido cabrão?! Mas olha que vais ficar ainda mais depois de uns aninhos na gaiola.” Terá sido qualquer coisa deste género que lhe gritou, enquanto o agente Tavares estancava com as suas mãos o sangue no pescoço de Santos e o agente Gandarez chamava assistência médica.

Dez anos depois de ter deixado a polícia, Santos ainda mantém contacto com os colegas que, acredita, lhe salvaram a vida. Bebem uns copos juntos, de vez em quando. Uma ou duas vezes por ano também se junta a eles e a outros ex-colegas nos torneios de sueca, de damas e nos jogos de malha que são organizados no campo de férias da PSP de Peniche. Vai a esses torneios mais por insistência da mulher do que por vontade sua.

A mulher não se conforma de o ver sempre trancado em casa. Maria ainda é Procuradora do Ministério Publico do Barreiro, como há dez anos atrás. Acredita que se tornou muito mais empenhada na sua profissão, desde o que aconteceu ao marido.

- Tirei uma lição do que aconteceu ao meu marido. A justiça tem de proteger mais e melhor os agentes no terreno, poupando-os do maior número de ameaças possível.

Hoje, Maria é a Procuradora do Ministério Público conhecida como “ A Dura”. Curiosa coincidência a das alcunhas lá em casa. Maria é frequentemente indicada como sucessora de Sá Fernandes na Procuradoria-Geral da República. E Santos tem orgulho na mulher, “claro”.

- Ela faz o que eu já não tenho forças para fazer.

Santos não se refere a forças físicas, certamente. Aos 42 anos, continua com um peso e desenvoltura física semelhantes aos que tinha quando era agente. Faz questão de manter as mesmas 200 flexões por dia, logo depois da corrida matinal, que religiosamente faz – das 9h às 11h, mais ou menos – depois de a mulher sair para o trabalho. A corrida é, normalmente, o único momento do dia em que sai de casa. Costuma passar as tardes a ver televisão ou a jogar consola – jogos que tenham armas, de guerra ou de combate, obrigatoriamente. Aos outros jogos não acha piada. A consola é um vício antigo, já jogava quando ainda estava na PSP. Só não o fazia com tanta frequência.

- Dantes era um hobby. Agora, é um refúgio.

Vícios recentes tem dois: o tabaco e a cerveja. Chama-lhes “o vício da reforma”. E sorri ao dizê-lo. É o primeiro sorriso da conversa. E já passaram quase duas horas. Na mesinha de apoio – junto ao cinzeiro lotado e às duas garrafas de cerveja, uma vazia e outra a menos de metade – uma moldura com Santos a meio-corpo. Fardado. Mais novo. Com os dentes mais brancos. E sem cicatrizes no lado esquerdo da cara.

- A fotografia foi tirada no dia da minha cerimónia do "compromisso de honra".

O jovem Santos integrava a Polícia de Segurança Pública com 22 anos.

- Nesse dia cumpria um sonho. E as expectativas eram grandes.

Terminariam, dez anos depois. Aos 32 anos, Santos reformou-se. Por vontade própria, depois de ter sido baleado e de ter ficado com mazelas para toda a vida. No entanto, nunca se arrependeu de ter entrado para a polícia.

- Enquanto lá estive prendi uns quantos. Ajudei a fazer justiça. Mas tudo o que tem início, tem um fim.

E Santos pôs fim à sua carreira por já não se sentir capaz de continuar.

- Já estava a ficar desleixado no meu trabalho. A prova disso é que não puxei da arma nem agi com precaução. Devia pensar que era o super-homem e que nada me acontecia.

Aconteceu. Naquela noite de há dez anos, Santos tombou, coberto de vermelho. Era a tonalidade do sangue que o rodeava. Infelizmente, não era o vermelho da capa do super-homem.

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