23 de abril de 2009

O amor é cego: cliché ou paradigma canino?


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Há expressões que, de tanto as ouvirmos, soam repetitivas e desprovidas de conteúdo. Ganham o estatuto – pouco digno, convenhamos – de cliché. A personificação do amor, atribuindo-lhe o carácter de cego é exemplo disso mesmo. Quem não ouviu já a expressão “o amor é cego”? E quem, à luz desta expressão, não olhou já para a Bárbara Guimarães e Manuel Maria Carrilho e pensou “bolas, a expressão assenta-lhes como uma luva”?
“O amor é cego”, isto! “O amor é cego”, aquilo! Analisemos então alguns dos significados possíveis da expressão. Para uns, amar cegamente significa nutrir um sentimento por alguém nitidamente menos dotado física ou mentalmente, mesmo que esse alguém seja o Frankenstein. Basicamente, o maior paradigma disso – logo a seguir à Bárbara Guimarães e ao Manuel Maria Carrilho – é a história da Bela e do Monstro. Para outros, amar cegamente pode significar só ter olhos para essa pessoa, independentemente das suas características físicas ou mentais. Neste caso, haverá uma devoção tal a quem se ama que não restará qualquer margem para apreciações a terceiros. É como se toda a atenção permanecesse focada naquela pessoa que, de peito cheio, dizemos amar. Neste caso, os exemplos serão pessoais e subjectivos, pois cada um saberá de si. Cada um dirá se é adepto de uma ou outra espreitadela mais afoita a alguém do sexo oposto ou se nem por isso. Gostos são gostos e não se discutem. Há, no entanto, um exemplo da cegueira do amor que julgo abranger todas e quaisquer definições já inventadas ou ainda por inventar: a malfadada relação entre o príncipe de Gales e Camila Parker-Bowles. Se esses dois não são cegos, venha o diabo e escolha!
Interlúdios à parte, falarei, agora sim, do que me levou a escrever sobre um chavão tão calejado como “o amor é cego”. Julgo poder ressuscitar esse lugar-comum que, de tão usado, se tornou balofo. Creio ter descoberto uma nova manifestação da expressão, mais nobre, canina mesmo. A Íris – reparem na ironia do nome enquadrado nesta crónica – é uma husky siberiana que tem tanto de pêlo preto como de branco. Os olhinhos azuis clarinhos sempre foram o ponto forte do seu book, qual modelo nórdica de suster a respiração. Quem conhece a raça, sabe que cães como a Íris são bastante carinhosos. E a Íris é, claro está, a luz dos olhos do seu dono. Constantino tem a cadela desde os tempos de secundário – e atenção que hoje é homem de barba feita. Ainda a cadela era bebé, já rebolava na areia da praia em frente à casa de Constantino, alinhando nas brincadeiras dele com os colegas. Era o centro das atenções. O orgulho daquele dono na cadela era imensurável e a Íris sabia-o. Usava-o em seu favor até. A alegre husky e Constantino eram inseparáveis. Pelo menos até à viagem de finalistas do 12º ano. Constantino acabava o secundário e partia com os colegas para Benidorm, destino clássico e incontornável de qualquer viagem de finalistas que se preze. Os olhinhos de Íris entristeceram. Naquela semana em que Constantino esteve longe, a cadela não comeu. Passou todo o tempo deitada na cama do seu dono e tomou a liberdade de lhe rasgar as roupas que lhe passavam pelos dentes. Castigava o dono que a abandonara. Sofria com aquela ausência. A mãe de Constantino desesperava ao ver a cadela naquele estado, mas ocultava o estado da pobre ao filho, para não o preocupar. No regresso de Espanha, Constantino encontrou uma cadela mais magra, mas a correr histérica ao seu encontro. Era boa de ver aquela alegria súbita, medida em dezenas de abanadelas de rabo por segundo. Íris depressa voltou ao que era dantes. Recuperou o peso perdido. Já as roupas, essas estavam irrecuperáveis.
Antes que Íris pudesse esquecer o que lhe custou aquela ausência de uma semana, Constantino partia novamente para os Estados Unidos, desta vez por um período de tempo maior. Ia com a mulher e o filho, queria trabalhar por lá durante uns anos, até conseguir pagar o empréstimo da casa que comprara depois de casar. Íris ficava na casa da mãe de Constantino. Voltou a não comer, passava os dias a chorar a ausência daquela pessoa que lhe fazia tanta falta. Os olhos azuis de Íris incharam e incharam até ficarem do tamanho de bolas de golfe. Os olhos de book, em tempos tão bonitos, estavam agora esbranquiçados e aguados, como se Íris neles guardasse todas as lágrimas que tinha para chorar. Ao fim de dois meses, os olhos mingaram, mas nunca perderam aquela camada de vidro esbranquiçado que lhes roubara o azul. Ironia das ironias: Íris estava cega. Existirá maior exemplo de que o amor é cego?
À Íris e ao Constantino - a quem prometi ser a mão de várias estórias de vida. Cá está a primeira.

2 comentários:

  1. Dios mio, e que mão.

    Que história linda e tão bem escrita, ficava aqui a ler-te ...

    Parabéns!

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