26 de fevereiro de 2009

Uns dias depois... uma estória de Carnaval

- Palhaços!

Grita exaltado o Zé Quintolas, depois de ser atingido. Um ovo em cheio na testa. Splash!

- Merda!

O Zé Quintolas vocifera para si mesmo, enquanto limpa o que resta do ovo com uma mão. Os putos mascarados de palhaços afastam-se dele às gargalhadas. Munidos de ovos e farinha, espalhavam o terror da aldeia naquela terça-feira de Carnaval. E as vítimas das diabruras ficavam possuídas de fúria, tal como o Zé Quintolas com o ovo escarrapachado na testa. O que era suposto ser uma brincadeira engraçada de carnaval transformava-se num rol de insultos que – em circunstâncias normais – aquelas crianças não deveriam escutar. Vá lá que o Zé Quintolas se tinha livrado da farinha. Os miúdos tinham perdido a coragem depois do ovo. Afinal, não era fácil afrontar o durão da aldeia. Sobretudo quando esse durão carrega uma espingarda.

O Zé Quintolas carregava também um apelido histórico na história da caça. O apelido e a espingarda, herança do pai, faziam dele caçador. Mas o jeito, esse não o tinha herdado do falecido pai. O Zé Quintolas era uma desgraça com a espingarda. Nos seus quarenta anos de caça envergonhavam-lhe o currículo pouco mais de cinquenta lebres – consta que dez delas já estavam mortas quando as apanhou – uma dúzia de perdizes e uma vaca – que pastava no sítio errado à hora errada. Se o Zé já era uma desgraça sóbrio, quando bebia nem se fala. Saía da tasca a cambalear, com a espingarda mal arrumada debaixo de um braço e a chamar as suas presas como quem chama um gato. “Bichinho, bichinho, bichinho… “. E ai de quem o tentasse separar da espingarda carregada. O Zé transfigurava-se. Ameaçava os bem-intencionados com um tiro certeiro – embora todos soubessem que dificilmente ele o conseguiria dar. Por isso mesmo, lá o deixavam andar, aos caídos, com a boina entortada na cabeça e a espingarda a bater-lhe nos pés. Aos tropeções. Que figura! Casaco axadrezado de lã, fizesse sol ou fizesse chuva. Nunca ninguém o viu sem aquele casaco. Era a sua imagem de marca, dizia, orgulhoso. De facto, não fosse o casaco e a espingarda ninguém o tomaria por caçador. Excepto ele próprio, que se julgava o maior caçador de sempre – a seguir ao falecido pai, claro. Não ousava ultrapassar a perícia do progenitor. “Um dia ainda caço um javali” ouviam-no dizer muitas vezes. Gargalhadas. O mais perto que ele estaria disso seria atirar noutra vaca que, placidamente, pastasse, mesmo ali à mão de semear.

A verdade é que, contrariando os cépticos da aldeia, o Zé Quintolas acertou num javali. Tudo aconteceu há um ano atrás. A noite já tinha caído quando o Zé voltava da tasca. E, apesar do breu e do vinho, ele jura a pés juntos que nunca viu nada com tanta clareza na sua vida. Um suíno com mais de uma tonelada, certamente, mexia-se nos arbustos da beira de estrada. E o Zé nem queria acreditar na sua sorte. Preparou logo a espingarda, pois não queria falhar uma oportunidade tão boa. Apontou a mira aos arbustos. Ensaiou o equilíbrio. Concentrou-se. E pum! O animal tombava depois de um grito. O Zé Quintolas não cabia em si de felicidade. Aliás, desmaiou ali mesmo no asfalto. De felicidade ou da bebedeira. Talvez das duas, não se sabe. Quem chegou a seguir, atraído pelo disparo, presenciou um espectáculo memorável. No asfalto, o Zé Quintolas continuava caído, abraçado à arma e com um sorriso nos lábios. Nos arbustos, a prima Odete gemia com as dores do tiro que levara. Vestia um fato de serapilheira, tinha um copo preso por um elástico em frente à boca e umas orelhas de cartão coladas à nuca numa bandolete. Naquele carnaval, a Odete decidira mascarar-se de javali para afrontar o primo Zé. Só não contava que tropeçasse no fato improvisado e caísse aos arbustos. Não contava, sobretudo, que os olhos toscos do primo lhe confundissem os cento e muitos quilos embrulhados em serapilheira com o lombo de um javali.

“Um dia cacei um javali. Era dia de carnaval”, passou a dizer o Zé. Gargalhadas. Ele nunca soube o que realmente acontecera naquele dia de Carnaval. Assim como nunca soube porque é que a prima Odete deixara de lhe falar.

2 comentários:

  1. Tá fixe esta história. Foste tu que inventaste ou é verídica?

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  2. Inventei :) Verídico só o nome do protagonista. Pergunta à Lara que ela sabe quem é. Hehe

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